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Patrimônio, identidade e memória: os 86 anos do Mercado Municipal de Campos dos Goytacazes.
Carlos Roberto Bastos Freitas

A proposta deste trabalho é estudar o Mercado Municipal de Campos dos Goytacazes, sua ‘Praça do Mercado’, começando pelos seus antecedentes históricos, para, em seguida, apresentar uma etnografia de sua situação atual, sua área de ocupação, suas tipologias comerciais, seus atores sociais (comerciantes e fregueses), seu sistema de abastecimento e distribuição de produtos, sua regulamentação e modo de funcionamento, as características peculiares de sua sociabilidade.
O movimento financeiro que acontece ali diariamente é grande, pois envolve, além das atividades de comércio varejista, dentro e fora dos limites físicos do Mercado, também o abastecimento atacadista de alimentos. Essa modalidade comercial é realizada diariamente, sem interrupções, tendo início durante a madrugada e estendendo-se pelo dia, nos arredores do Mercado.
O abastecimento de gêneros alimentícios nas cidades brasileiras em geral, foi, desde o período colonial, provido pelos armazéns de ‘secos e molhados’, pelas quitandas e, também pelos ambulantes (peixeiros, verdureiros, leiteiros, etc) que atendiam de porta em porta, com seus produtos acondicionados em grandes cestos levados à cabeça ou, em lombo de animais ou carroças. Situação semelhante que ainda permanece em algumas regiões do país.
As administrações municipais (câmaras) buscavam concentrar alguns tipos de comércio (verduras, animais vivos, peixes, frutas, legumes, grãos e ainda artesanato utilitário – esteiras, vassouras, cestos, etc) em locais específicos, amplos, como praças e largos . Desse modo, a fiscalização da qualidade e o volume dos produtos vendidos e a cobrança das taxas, ficava menos onerosa e mais eficiente.
A concentração desses tipos de comércio e também de prestadores eventuais de serviços (carregadores, artesãos) foi, o início das chamadas Praças do Mercado, ou ainda, Largo do Comércio, Largo das Verduras e outras denominações, influenciadas pelos produtos comercializados ou pontos de referência locais.
A partir do início do século XIX, começam a surgir os Mercados Municipais, como estrutura física, construídos especialmente para esse fim. Podem ser caracterizados como uma área coberta, total ou parcialmente, fechados ou abertos, com áreas de circulação interna ou não, com espaços delimitados para cada comerciante ou por tipo de comércio. Difundem-se como espaços privilegiados para o comércio, principalmente, a partir da grande reforma urbana de Paris em meados do século XIX, idealizada por Hausman, e com a construção de “Les Halles” que se transformou em um ícone.

2 – O Mercado como objeto de pesquisa.
Como instituições presentes nas sociedades humanas as mais diversas, os mercados se caracterizam pela troca de bens econômicos, através de um intenso movimento comercial, com organização formal e normas institucionalizadas, colocando vendedores e compradores em contato direto, bem como pelo fato de constituírem locais de intercâmbio de informações, de troca de idéias, de ouvir e contar histórias.

“Quando visitamos uma cidade, vila ou mesmo aldeia, portuguesas ou não, uma das melhores maneiras de as conhecermos, na relação modernidade e tradição, será dirigirmo-nos para um de seus mercados, e se o dia for de feira, para o recinto onde esta se realiza: para lhe tomarmos o pulso, para sentirmos o ritmo sazonal e humano do trabalho e do lazer, das trocas e do comércio, da compra e da venda e da comunicação humana que trazem implícita; nada melhor do que esses lugares para nos desvendar coisas recentes ou muito antigas que despertam a curiosidade local, nacional ou mesmo estrangeira”. (Eduardo Graça, In: Coelho, 1998: IX)

Neste sentido, eles se configuram como instrumentos de integração dos diversos setores de uma sociedade e de seus distintos recortes sócio-espaciais. Um espaço privilegiado de trocas materiais e sociais que se articula com o comércio dos arredores, caracterizando dessa forma, a complementaridade das atividades econômicas de uma cidade.
O Mercado Municipal de Campos, instalado há oito décadas na área central da cidade, funciona diariamente, sem interrupções e com um caráter permanente de comércio; neste sentido, não apresenta a mesma temporalidade das feiras que acontecem em dias e locais pré-determinados.
Esse Mercado, construído e administrado pela Prefeitura, que aluga seus diferentes espaços aos comerciantes, veio, ao longo do tempo, sofrendo um processo de desgaste. Foi, como gostam de dizer os comerciantes, “lançado à própria sorte”, não tendo sido as reformas empreendidas durante esse período, capazes de recupera-lo completamente, embora sua importância, para o comércio local, não tenha, no decorrer dos anos, diminuído.
Como se tratava, neste caso, de um ponto tradicional de abastecimento de víveres, situado numa área central e exclusivamente comercial, freqüentado por uma parcela significativa da população do Município, urbana e rural, sendo, pois, um ponto de referência - comercial e físico - da cidade; e, como também sobre ele paira mais de um projeto de re-localização e modernização, pareceu importante e oportuno toma-lo como objeto de uma pesquisa etnográfica.

2.1 – As tarefas da pesquisa.
Em termos bastante simplificados, a tarefa da pesquisa consistiu em reconstruir a trajetória do mercado, desde o primeiro esboço de uma ‘Praça de Mercado’, no espaço urbano da cidade oitocentista, até o surgimento do Mercado Público Municipal, em 1921, para, em seguida, apresentar este Mercado tal como existe hoje, no mesmo local, retratando-o com a maior precisão etnográfica possível, para restitui-lo, sob a forma de um texto, em sua integralidade, como instituição da sociedade urbana campista. Com este fim, desenvolvi, durante cerca de dois anos, meu trabalho de campo no local.
A primeira parte, uma espécie de genealogia da ‘Praça do Mercado’, implicava numa pesquisa essencialmente documental, realizada, em consultas à bibliografia existente sobre a cidade, consideradas clássicas, e na exploração das fontes jornalísticas disponíveis. Este se revelou mais bem provido de informações, pois retratava, de forma sistemática as efemérides locais, onde despontavam também aquelas relativas ao Mercado. A principal fonte utilizada, neste sentido, foi a coleção do mais antigo periódico local – O Monitor Campista, em circulação desde 1840.
A pesquisa propriamente etnográfica exigia uma descrição pormenorizada do Mercado em sua totalidade, o que não significava descrever a totalidade do mercado. Significava, isto sim, descreve-lo nas suas diferentes dimensões, sem realizar uma distinção artificial entre os seus aspectos propriamente econômicos – as operações comerciais – e os múltiplos modos assumidos, a propósito destas, pela formas da sociabilidade. Neste sentido, era preciso descrever o seu espaço, tanto em seu conjunto, quanto no detalhe. Para a execução dessa tarefa, os procedimentos adotados foram, inicialmente, a observação direta e sistemática, de acordo com parâmetros estabelecidos nos textos utilizados como referencial teórico, complementada por entrevistas (formais e informais) com os comerciantes, fregueses e funcionários da administração. Além desses recursos busquei, ainda, o auxílio de mapas e fotografias de época.
Para conseguir fazer uma descrição particularizada, transmitindo, de maneira a tornar compreensível toda a mecânica e dinâmica das atividades, comerciais ou de outra natureza qualquer, que se desenvolvem, cotidianamente, no Mercado, foram necessárias muitas horas de pesquisa de campo. Com este fim, optei pela realização de visitas em dias e horários diferenciados, estratégia que se revelou essencial para dar conta dos movimentos e ritmos dessa instituição. Desse modo, pude observar os níveis de afluência do público; os horários de maior concentração de comerciantes e fregueses; o manejo dos produtos a serem comercializados, bem como a preparação e a limpeza da área. Esse procedimento foi fundamental, ainda, para perceber como os diferentes espaços eram valorados pelos comerciantes, identificando, a partir daí, os espaços nobres, dentro de uma mesma área.
Para as entrevistas e a coleta de informações, realizadas com os comerciantes, apoiei-me na experiência de outros pesquisadores, bem como em suas descrições. Estas pesquisas, realizadas em sociedades e épocas distintas, têm como objeto principal o funcionamento dos mercados em suas particularidades locais e regionais.
Esses diferentes modos de análise, cada um deles pertinente ao seu modo, têm em comum, o fato de nunca oferecerem por inteiro a visão do objeto estudado, senão informações sobre assuntos específicos. O mercado suporta a construção de um conhecimento que o ultrapassa, que vai além de seu espaço físico e da atividade comercial, que transborda a simples compreensão do fenômeno.

3 – A cidade e seu(s) mercado(s).
Uma breve caracterização da cidade, e do seu desenvolvimento como artefato urbano, a partir de processos de modernização baseados no exemplo de outras cidades e com uma clara influência dos princípios do urbanismo higienista, além do sempre presente apelo da ‘modernidade’, elementos que contribuíram, decisivamente, para modificar a sua feição, durante os séculos XIX e XX. A partir daí, se abordará a gênese do Mercado Municipal, traçando a sua trajetória no espaço da cidade, e buscando compreende-lo como uma instituição urbana, com base na análise de seu regulamento, para, em seguida, debruçar-se sobre as suas vicissitudes.
A cidade de Campos dos Goytacazes, em virtude de sua escala e poder econômico, tem polarizado, historicamente, não apenas as regiões norte e noroeste do Estado do Rio de Janeiro, mas também o sul do Espírito Santo e a região fronteiriça da assim chamada Zona da Mata de Minas Gerais. Está localizada numa extensa planície às margens do Rio Paraíba do Sul. A cerca de 290 quilômetros da capital do Estado e apenas de 30 quilômetros da costa, sendo interligada aos demais centros urbanos da região por estradas asfaltadas, linha férrea e via aérea.
Quanto à forma urbana, Campos é uma cidade essencialmente plana, ocupando as duas margens do Paraíba, ao longo das quais se estendem avenidas largas, ligadas, por sobre o leito do rio, por quatro pontes e uma em construção, das quais uma é a quase centenária da via férrea, toda construída com perfis de aço, importados da Inglaterra.
O núcleo original e histórico da cidade, estruturou-se ao redor da Praça São Salvador, onde se encontravam, desde o século XVII, os edifícios públicos mais importantes, como a Igreja (hoje Catedral); a Casa da Câmara e Cadeia, e, posteriormente, a Santa Casa de Misericórdia. Em torno desta Praça, as casas da cidade antiga se apertam, ao longo de vias estreitas, sempre alinhadas pela testada da rua, sobre a qual se abrem suas portas e janelas. É uma área onde ainda se podem encontrar exemplares da arquitetura eclética, característica do início do século XX, misturadas às construções mais ‘modernas’ dos anos 50, 60 e 70, de estética pouco atraente, e, de um modo geral, voltadas para atividades comerciais ou de serviço.
Seus mais de quatrocentos mil habitantes se distribuem, numa ocupação ainda predominantemente horizontal, que compreende desde bairros modernos e sofisticados até favelas, ao longo de uma gama variada de tipos intermediários, na maioria modestos ou mesmo pobres. Do seu esplendor açucareiro permaneceu-lhe uma tradição de doces, fortemente incorporada à sua identidade.
O processo de colonização regional ocorreu a partir do início do século XVII e sua economia girou, desde o início, em torno da produção agrícola. A exploração econômica inicial, desbravadora, coube à criação de gado para suprir o mercado consumidor da cidade do Rio de Janeiro, e, posteriormente, da região das Minas Gerais. Em meados do século XVIII, teve início a produção de açúcar, que ainda permanece, e que foi, até bem pouco tempo atrás, o mais importante, duradouro e lucrativo modo de exploração. A economia regional esteve, pois, historicamente associada a uma variada produção agro-industrial capitaneada pelo açúcar, com surtos de desenvolvimento e períodos de estagnação, que se alternaram. O século XIX e início do século XX marcaram a expansão do comércio, motivada pela grande produção e pelos bons preços do açúcar e do café, seus principais artigos de exportação.
A cidade, desde sua fundação, foi se firmando, gradativamente, como pólo importador e exportador, concentrando a produção regional, para exporta-la, e, também, distribuindo produtos e serviços, essenciais para a manutenção e desenvolvimento de suas atividades. Os relatos dos viajantes que a visitaram e de cronistas locais corroboram esta caracterização

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3.1 – O “Largo das Verduras”
A referência mais antiga a um local onde se concentravam vendedores ambulantes e artesãos, era a esse local, que situava-se no trecho da Rua Sete de Setembro (antiga Rua das Flores), compreendido entre o Largo do Rosário e a Rua Governador Theotonio de Araújo (antiga Rua da Quitanda). Atualmente é denominada Praça Prudente de Morais, utilizada apenas como ponto de táxi e estacionamento.
Em 1850 a Câmara deliberou que no Largo das Verduras e no do Capim , fossem os lugares especiais ”para se venderem quaisquer quitandas, quer verduras, quer de outro qualquer gênero ou objeto” conforme transcrição da Ata de 15 de abril. Desde a Postura de 1829 , esses locais já eram destinados, oficialmente, ao comércio, de “lavradores e indústria”, confirmando uma prática anterior, regulamentada por legislação específica.

3.2 – O “Mercado Velho”
Em 1855 a Assembléia Legislativa Provincial aprovou o Decreto nº 782, que autorizava a Câmara Municipal de Campos a “contratar com a companhia ou emprezário que maiores vantagens offerecer a construção de um mercado público, mediante a concessão de privilégio por um prazo que não exceda a quarenta annos, findo o qual ficará o mercado incorporado aos próprios do município”. Somente em 1877 é que se tem notícia, através do Monitor Campista, do desenrolar dessa autorização, quando é publicado um parecer de uma Comissão nomeada pela Câmara Municipal, sobre a conveniência das condições aprovadas pela Assembléia Provincial e o empresário escolhido para a execução do contrato
Apesar do parecer e de reclamações dos comerciantes, a Câmara celebrou em 6 de novembro de 1878 com o empresário Antonio da Silva Pinto Sobrinho, um contrato para a construção de uma ou mais praças de mercado utilizando o sistema de abarracamento parcial ou coberta geral. O local escolhido para a nova praça do mercado foi o Largo do Rocio (atualmente esse logradouro não existe mais) e deveria ser construído um outro estabelecimento similar na Rua Pedro II (Beira Rio) para abrigar o comércio de peixe.
Apenas pelos jornais locais, publicados a partir de meados do século XIX se pode ter uma dimensão do que acarretou a construção da primeira ‘Praça do Mercado’, transferindo parte do comércio e, assim, também ampliando os limites da cidade para outras áreas. Essa praça, que veio em substituição à “Quitanda Velha”, foi inaugurada em fevereiro de 1880, no Largo do Rocio
Na inauguração, em 7 de fevereiro de 1880, o Monitor Campista registra a participação de políticos, jornalistas e convidados, registra os brindes trocados e tece elogios ao empreendimento. Poucos meses depois, em abril de 1880, o empresário da Praça reclama da conduta abusiva dos fiscais e guardas municipais, que prejudicavam o andamento dos negócios, e também dos comerciantes estabelecidos nas proximidades, que abrigavam os quitandeiros em seus estabelecimentos e que não pagavam as taxas, ocasionando, dessa forma, prejuízos, e violando o contrato assinado. A dubiedade das atitudes da Câmara, não reprimindo esse comércio fora da área do Mercado, ocasionou uma ação judicial, de perdas e danos, que obrigava o Município a indenizar a empresa exploradora e a reprimir o comércio de quitandeiros, fora dos limites permitidos.
A partir de novembro de 1890, o jornal A República, em artigos, faz uma análise da ação judicial movida pelos empresários da Praça contra a Câmara. Apesar disso, a Câmara preferiu renovar o contrato com os empresários por mais trinta anos, em 1891, estipulando termos ainda mais favoráveis a eles, permanecendo, no entanto, a disputa judicial que se prolongou por quinze longos anos
Em maio de 1901, a Câmara, solucionou a velha pendência, que, por força de sentença judiciária, alcançava grandes proporções (20 contos de réis), adquirindo, por cem contos de réis, o usufruto, por trinta anos (com escritura passada em cartório), do Mercado do Rocio, e extinguindo a Empreza da Praça do Mercado. A transação contou com a intermediação do Banco Comercial e Hipotecário de Campos. Após uma pequena reforma e novos contratos de locação, a Praça do Mercado foi, mais uma vez, solenemente re-inaugurada, em 30 de junho do mesmo ano.
O Mercado funcionou neste local até 1921, quando foi transferido para uma área fronteira ao antigo terminal do Canal Campos-Macaé, que, à época ainda era utilizado como via de transporte apenas com canoas. No local do antigo Mercado, existem dois pequenos quarteirões, construídos após a urbanização da área. Facilmente identificáveis pela largura diferenciada das ruas que os delimitam.

3.3 – O ”Mercado Novo”
Com a denominação de “Praça do Mercado”, foi inaugurado em 15 de setembro de 1921. Veio em substituição ao “velho departamento que já não correspondia às necessidades hygiênicas da população. O edifício é amplo, como se vê exteriormente, tem o seu interior dividido em secções indispensáveis a um estabelecimento de tal ordem e natureza”. Estas palavras do periódico se referiam a um modelo de estabelecimento comercial já conhecido e consagrado, no mundo urbano moderno, tal como este se havia configurado nas metrópoles da Europa Ocidental e nos grandes centros urbanos brasileiros. Convém assinalar que não se tratava, no caso, apenas de um novo dispositivo técnico, voltado para o aprovisionamento da população, mas também, e talvez sobretudo, de um objeto simbólico.
Esse modelo de estabelecimento comercial parece ter vindo ao encontro dos anseios da população, que naquela época já possuía um nível de exigência elevado em relação à qualidade dos produtos comercializados no mercado e também como uma maneira de mostrar aos visitantes um equipamento público que igualava a cidade às metrópoles da época, a visão de “moderno” por conta das grandes obras de modernização das capitais, especialmente o Rio de Janeiro. Contava ainda com um Regulamento preciso, onde os “compartimentos” eram distribuídos por função, com restrições ao comércio de alguns produtos e somente venda a varejo. A questão da higiene permeava todo o Regulamento, constituindo, neste sentido, sua espinha dorsal ideológica. A autoridade da Diretoria de Higiene pairava sobre todas as atividades do Mercado
A ‘Nova Praça do Mercado’ não atendia somente às exigências da qualidade dos produtos comercializados. Para além disto, era um equipamento público graças ao qual a cidade de Campos podia, finalmente, equiparar-se às metrópoles da época, seguindo os cânones aplicados à modernização das capitais brasileiras, especialmente ao Rio de Janeiro. Destinava-se não apenas a servir “o estômago da população”, mas também, a alimentar o seu orgulho em face dos “forasteiros”, algo para ser mostrado ao visitante, e também aos próprios campistas.

4 – As vicissitudes da Nova Praça do Mercado na vida real.
Com poucos anos de funcionamento, já encontramos, em 1928, reclamações sobre seu funcionamento. O Monitor Campista critica o que chama de “anarchia”, referindo-se, com esta palavra ao fato de se verem e ouvirem “a cada passo, gestos e palavras offensivos à moral”,
Na década de 1940, surgiram críticas mais veementes, ao funcionamento, e às condições de higiene do Mercado, embora se registrem, igualmente, elogios, dirigidos, neste caso, aos melhoramentos realizados pelo poder público. Essas críticas se tornam freqüentes, permanecendo até hoje, acrescidas das mais variadas sugestões, todas elas solicitando melhoramentos na estrutura física, maior rigor na higiene dos alimentos, e mais ordem. Algumas delas chegam a sugerir a demolição e a transferência do Mercado para outro lugar.

4.1 – Os Projetos para o Mercado
Sob a ótica dos que querem sua saída, o Mercado merece, em essência, os mesmos reparos que já fazia o urbanismo sanitarista, às velhas Praças, que a Nova Praça do Mercado pretendeu substituir. É, em primeiro lugar, deficiente quanto às condições sanitárias do seu aparato de exposição de produtos, como indicam os resíduos vegetais, que se desmancham no chão; ou a água do peixe e do camarão, que, ao evaporar, exala um “mau cheiro” repulsivo. Em segundo lugar, carrega o estigma de ter sido, em outro tempo, um pólo de atração para prostitutas, arruaceiros, bêbados e ladrões. Em terceiro lugar, constitui um estorvo urbanístico, na medida em que provoca o congestionamento das vias públicas adjacentes, obstando a circulação, o livre fluxo dos veículos, principalmente nas horas de maior movimento. Finalmente, trata-se de um local que, segundo esse ponto de vista, não oferece ao público o conforto necessário, por uma série de motivos: faltam vagas no estacionamento; seus corredores são estreitos para o intenso movimento de pessoas; é deficiente quanto à refrigeração do pescado e das carnes; falta-lhe uma melhor manutenção quanto à estrutura física, o que lhe confere um ar de abandono; e, por fim, abriga um tipo de comércio anacrônico, em contraste com a modernidade e “limpeza” dos supermercados e hortifrutis, “que tem de tudo”.
Com base nestes argumentos, surgiu, entre outros, um projeto de transferência física do Mercado e de revitalização da área atualmente ocupada por ele. O objetivo maior desse projeto é provocar uma transformação radical de todo o comércio da área central da cidade, e, com ela, uma correspondente mudança nos hábitos da população. A partir dele, configurou-se uma situação (potencial) de conflito entre o poder público e os comerciantes da área, análoga àquela já verificada por ocasião das mudanças anteriores.
A transferência das atividades comerciais para o Novo Mercado tem uma grande resistência dos comerciantes, as causas mais citadas foram, principalmente, a distância física do centro comercial da cidade, o transporte público urbano precário e o exemplo de ineficiência do poder público na transferência da Rodoviária (ônibus intermunicipais) para o Shopping Estrada, que está isolado e a maior parte das lojas fechadas ou com pouco movimento.

5 – O Lugar do Mercado na Cidade.
Sua área física situa-se no centro de Campos, a três quadras da Praça São Salvador – o coração da cidade, e a não mais de quatro quarteirões da margem do Paraíba. Uma área ampla e bem servida de acessos, não apenas contígua ao núcleo histórico da urbe, e, também, a pequena distância dos diversos atracadouros (ou “portos”) que recebiam as embarcações que utilizavam Rio Paraíba do Sul como via de distribuição de mercadorias, como, ainda, nas proximidades da ‘Rodoviária Velha’,o terminal de ônibus, urbanos, intramunicipais e interurbanos – ponto nodal da rede viária que comunica bairros, distritos e cidades próximas com o Centro da metrópole regional.
A “Praça”, construída neste local, em 1921, conseguiu resistir às profundas transformações sociais e urbanas das décadas subseqüentes, embora com alguma defasagem. Procurou acompanhar a evolução das técnicas comerciais e a inclusão dos novos produtos disponíveis no setor alimentício e, dessa forma, conseguiu ampliar sua área de atendimento, suprindo o aumento da demanda de uma população sempre crescente.
A influência da ‘Praça do Mercado’ ultrapassa sensivelmente os limites físicos do seu espaço, como indicam as conexões quotidianas entre a sua atividade comercial e aquela desenvolvida nos seus arredores. As ruas que delimitam a área do Mercado servem como referenciais definidores do seu espaço mais imediato, ao mesmo tempo em que o conectam a um ‘território’ mais amplo, cuja importância para a vida urbana do campista pode ser inferida pela quantidade de atividades – comerciais, administrativas e sociais – que nele têm lugar.
Nessas ruas, encontramos um comércio variado e ativo, com um fluxo permanente de pessoas circulando em todas as direções, apenas durante o período comercial. À noite, essas ruas tornam-se desertas, característica de uma área essencialmente comercial.
Nelas, há uma grande variedade de estabelecimentos comerciais, que oferecem roupas prontas e aviamentos; eletrodomésticos; artigos de papelarias; produtos farmacêuticos e/ou estéticos, material de ótica; ferragens e utensílios do lar; balas e biscoitos. Alguns deles são padarias, lanchonetes, restaurantes e pastelarias. Nos quarteirões seguintes encontramos ainda, agências bancárias; hotéis; lojas de móveis, autopeças e implementos agrícolas. Além disso, há os estabelecimentos prestadores de serviços: barbearias; salões de beleza; cartórios; oficinas gráficas, mecânicas e de aparelhos eletro-eletrônicos; e a sede do Monitor Campista.
Uma simples caminhada pelos arredores do Mercado basta para evidenciar, com clareza, essa interação de atividades, onde cada uma é favorecida pelas demais, numa complementaridade complexa, em virtude da qual a falta de uma resultará no prejuízo de outras, na medida em que o cliente de um poderá, sempre, vir a ser o ‘freguês de passagem’ do outro; e onde, portanto, a sobrevivência e a prosperidade de cada qual dependerá da presença e participação dos demais.

6 – A Função da ‘Praça do Mercado’.
O conjunto ao qual se dá, atualmente, o nome de ‘Mercado’ é composto por três estruturas arquitetônicas próximas e, sob certos pontos de vista, interligadas. Ao centro, está a mais antiga, que corresponde à ‘Praça do Mercado’, mais conhecida, agora, como ‘Mercado Coberto’. Este último, visto desde a Rua Formosa, é ladeado, à esquerda, pelo galpão da ‘Feira’; e, à direita, pela estrutura do Mercado Popular Michel Haddad, mais conhecido como ’Camelódromo’. Embora espacialmente contíguas, essas três partes se separam administrativamente
O que se vende no Mercado ‘stricto senso’, isto é, na ‘Feira’ e no ‘Mercado Coberto’ se distingue e contrapõem às mercadorias oferecidas no ‘Camelódromo’, que vende artigos ‘globalizados’, como eletro-eletrônicos; objetos decorativos; bijuterias; brinquedos; relógios; roupas e adereços; e assim por diante.
As tipologias comerciais praticadas, atualmente, no Mercado Municipal, foram identificadas, a partir da observação direta e de informações obtidas na Administração do Mercado. De acordo com o último levantamento realizado, no final de 2005, há muito mais comerciantes identificados do que ‘pontos’ de venda. Às vezes, em apenas uma banca, trabalham dois, ou mais, não necessariamente no mesmo dia, ou juntos.
Levantamento estimado de tipos de produtos e quantidade de pontos de comercialização no Mercado Municipal de Campos – dezembro de 2005.

TIPO DE PRODUTO QUANTIDADE DE PONTOS COMERCIAIS
Roupas e bolsas 16
Vegetais 149
Peixes e crustáceos 42
Carnes 15
Laticínios 10
Mercearias 32
Alimentos preparados 29
Artesanato e ferragens 9
Ervas medicinais 8
Biscoitos 11
Animais vivos 4
Outros 14
TOTAL 338

Há comerciantes que utilizam mais de um box ou banca, normalmente, contíguos. Alguns têm até cinco boxes, e, na ‘Feira’, há comerciante com até dezenove bancas. Oficialmente o Mercado Municipal têm, ocupadas, na ‘Feira’, 465 bancas ou tabuleiros fixos e 8 avulsos para venda de limão. Na peixaria são 46, perfazendo um total de 519 pontos de comercialização. É difícil identificar essas quantidades, pelo fato de as bancas serem contíguas. No ‘Mercado Coberto’ são 52 compartimentos externos e 116 internos, perfazendo um total de 168. O total de boxes e bancas, soma 687 ‘pontos’ acrescido dos ‘avulsos externos’ e dos ambulantes. Os ‘avulsos’ oficiais somam 24 barracas, localizadas no estacionamento dos fundos, sob as árvores; 5 churrasquinhos; e 6 bancas externas.

7 – O Mercado Hoje

O “Mercado Coberto”
O edifício do ‘Mercado Coberto’, foi construído com paredes de tijolos e colunas de concreto. Estas sustentam a cobertura, formada por perfis de aço e vigas de madeira, que, por sua vez, apóiam um telhado de telhas ‘francesas’, encimado por um lanternim, para iluminação e ventilação, ao longo dos dois segmentos, separados um do outro pela torre do relógio e caixa d’água.
O acesso ao seu interior, é proporcionado por quatro portas, que originalmente eram fechadas por portões de ferro lavrado, substituídos, hoje, por portas de aço. Esses portões estão localizados nas duas extremidades e ao centro da construção. Internamente, um corredor lateral circunda todo o edifício, formando dois blocos de boxes, um central e outro lateral.
Ao longo do tempo, o ‘Mercado Coberto’ passou por intervenções estruturais que não alteraram substancialmente sua forma original, externamente acrescida de uma marquise de concreto. A distribuição dos boxes no ‘Mercado Coberto’ foi modificada em diversas ocasiões no decorrer de sua trajetória. Na própria época de sua construção, o pavilhão central onde está a caixa d’água era “destinado à instalação frigorífica, onde seriam conservados os peixes, o leite, legumes e gêneros de fácil deterioração”, não construída, e à administração e depósitos.
O ‘Mercado Coberto’ apresenta um comércio diferenciado do restante, acomodado em compartimentos fechados ou lojas, voltadas para dentro ou para fora. Os boxes voltados para o passeio externo, são de maior tamanho, predominando os açougues, as mercearias e bares. No interior da edificação, predominam mercearias, floras e pastelarias, mas há, também, bares, lanchonetes, cafés, lojas de artesanato utilitário local e/ou regional, além de uma relojoaria e a Rádio do Mercado.
Também no ‘Mercado Coberto’ o movimento começa cedo, entre 5 e 6 horas da manhã, quando abrem os açougues, bares e cafés. Os outros estabelecimentos começam a funcionar a partir das sete. De segunda a sexta, as atividades se encerram às dezoito horas; aos sábados, às quinze; e aos domingos e feriados, ao meio-dia. Os compartimentos externos – açougues e bares – são os últimos a fechar, por volta das dezenove horas. Chova ou faça sol, o Mercado funciona todos os dias da semana, durante o ano inteiro, independente dos acontecimentos, permanecendo fechado somente no primeiro dia do ano.
A quantificação dos estabelecimentos a seguir foi levantada no início de 2006, podendo ocorrer variações, pois o comércio é dinâmico.
Na sua área interna, com acesso pelas duas extremidades e pela entrada central da construção, vamos encontrar:
· Mercearias (08);
· Pastelarias, com caldo de cana (10);
· Bares (05), lanchonetes (04) e cafés (03);
· Lojas de produtos artesanais e/ou industriais (08);
· Lojas de ervas e artigos religiosos (08);
· Relojoaria (01); e a
· Rádio Talismã do Mercado.

Na parte externa, ao longo de todo o seu perímetro, se alinham cinqüenta e dois (52) compartimentos, ocupados por:
· Mercearias (05);
· Pastelarias (01);
· Bares (04) e lanchonetes (04);
· Lojas de produtos artesanais e/ou industriais (04);
· Açougues (15);
· Laticínios (02);
· Loja de ração e peixes (01)
· Sapataria (01).

A “Feira”
O galpão da ‘Feira’ é uma construção mais recente, iniciada, em 1981, em comemoração aos sessenta anos de funcionamento do Mercado, sendo inaugurada somente em 1984. É constituído por uma estrutura de sustentação em perfis de aço que sustentam uma cobertura em alumínio. Seu espaço é delimitado por paredes laterais baixas, que não impedem a visibilidade externa, a entrada de luz natural e a ventilação. Sua construção se tornou necessária para proporcionar maior conforto aos comerciantes e consumidores que, no tempo em que a feira se realizava ao ar livre, ficavam sujeitos às intempéries. Esse local abriga as bancas de pescado, frutas, grãos, legumes, verduras e animais vivos. Como o próprio nome sugere, é uma grande ‘feira-livre’. É este espaço que concentra a mais intensa circulação de público e o maior volume de produtos e negócios.
Junto à área de comercialização do pescado, separada da “feira” apenas por uma parede baixa, um longo corredor principal, em forma de ‘T’, e corredores secundários, em sentido transversal, ao comprimento do galpão, faz a distribuição das bancas de frutas, legumes, grãos, biscoitos, verduras e temperos frescos. Nessa área as bancas expositoras dos produtos são diferentes, são formadas por longas estruturas em alvenaria, paralelas, duas a duas, divididas por corredores. Na parte interna, entre duas carreiras de bancas, num corredor estreito, ficam os comerciantes. O corredor de circulação dos fregueses é um pouco mais largo (pouco mais de 1 metro). Em dias de muito movimento, o trânsito de pessoas fica lento e difícil, agravado por resíduos e caixas com produtos a serem comercializados, pelo chão, carrinhos para transporte, bicicletas e fregueses em compras, principalmente nos horários mais concorridos entre 9 e 12 horas.
Além dos compartimentos, bancas e boxes fixos, que são a regra, no Mercado, constatei a presença de ambulantes, que aí desenvolvem atividades diversas. No Mercado, seu número é impreciso; a Administração não os controla mais, e, sua freqüência é maior nos fins de semana. Mas, alguns, estão ali diariamente. Em primeiro lugar, os que oferecem ‘quitandas’ – bolos, empadas, salgados, refrescos e café – aos comerciantes e, também, aos fregueses. Eles carregam seus produtos acondicionados em caixas forradas e garrafas, “tudo muito limpo e gostoso”, como costumam apregoar.
Existem, ainda, as vendedoras de pimentão em pequenos lotes, a um real cada; e os vendedores de limão. Há crianças vendendo balas e doces, adquiridos em pacotes maiores ali mesmo e oferecidas; e também, cartelas com adesivos decorativos. Nos fins de semana o número de ambulantes cresce. Há quem ofereça ferramentas; outros vendem bijuterias e cordões; outros ainda, pequenos objetos utilitários – bolsas de compras; blocos de notas; canetas coloridas; taças, formas e tigelas plásticas; utensílios de cozinha; redes e panos bordados do Nordeste.

8 – Os Inquilinos do Mercado.
Comerciantes, feirantes, açougueiros, peixeiros, quitandeiros, ou como quer que sejam chamados, são todos eles inquilinos da ‘Praça do Mercado’, onde, dia após dia, se dedicam ao seu ofício – atender os fregueses, fornecendo-lhes tudo aquilo que possa satisfazer as suas demandas.
Os atores individuais desse universo dos inquilinos se diferenciam, não apenas pelo objeto específico de sua atividade comercial, mas também em virtude de outras variáveis, cuja consideração importa ao entendimento deste mundo social peculiar que é o Mercado. São elas, não necessariamente em ordem de importância: o número de compartimentos concedidos; o local (ou locais) onde estes se situam; o tipo e o volume de mercadorias comercializadas; a qualidade do atendimento dispensado aos fregueses; a antiguidade do concessionário, na Praça do Mercado, e, finalmente sua rede de relações no âmbito desta.
Outra característica do Mercado é a de que, no referente aos comerciantes, este é um espaço predominantemente masculino. A convivência entre homens e mulheres parece, no entanto, não apresentar maiores dificuldades. Mas os espaços são bem demarcados, pois “as mulheres tem que se dar ao respeito”, mantendo uma atitude sóbria e recatada. Por esse motivo não atuam em determinados locais ou funções, dentro do Mercado. Há poucas mulheres, na peixaria e na feira. Nas pastelarias e lanchonetes elas são mais numerosas. Tudo isto não as impede de terem e gerenciarem os seus próprios negócios.

9 – Os fregueses do Mercado.
A ‘Praça do Mercado’ é freqüentada por muita gente. Se dermos crédito às estimativas do Administrador, cerca de três mil pessoas compram ali diariamente. No final da semana, isto é, de sexta a domingo, este número pode chegar a cinco mil, dependendo da época do mês. Nos primeiros quinze dias o movimento é maior do que durante a última quinzena, pois, este período coincide com as datas de pagamento dos assalariados e pensionistas. Uma contagem feita, em três dias da semana – quinta, sábado e segunda-feira, e durante uma hora, em três horários distintos, de um ponto de observação fixo, situado na intersecção do corredor das verduras com o corredor central da ‘Feira’, confirmou estas estimativas. Além disso, ratificou a impressão firmada pela observação visual direta de que os homens superam, numericamente, as mulheres, em qualquer dos horários e dias escolhidos. Confirmou, ainda, que o pico de freqüência se dá entre o meio dia e a primeira hora da tarde, indicando uma preponderância quantitativa do movimento matinal sobre o vespertino.
Para aprofundar e especificar esta caracterização da freguesia, acompanhei, durante duas semanas, à distância, trinta e quatro compradores, selecionados aleatoriamente, visando obter informações sobre: faixa etária; sexo; tempo de permanência, no Mercado; tipo de aquisições feitas; itinerários de compras; eventuais acompanhantes; e, finalmente, interação com os comerciantes. Nestes casos se verificou: o predomínio numérico dos homens (20 x 14); dos compradores desacompanhados (24 x 10); das faixas etárias entre os 40 e os 60 anos (22 x 12); do tempo de compras entre 20 e 40 minutos (27 x 07); e da aquisição de verduras, frutas e legumes (apenas 3 pessoas não compraram um desses tipos de produto). Quanto aos padrões de comunicação, verifiquei um certo equilíbrio. Alguns se estenderam em conversas, para além daquelas atinentes à transação comercial (12); outros tantos se limitaram ao essencial para a aquisição dos produtos (12); e outros, ainda, simplesmente não conversaram (10). Dos trinta e quatro fregueses observados, apenas dez (10) fizeram compras no ‘Mercado Coberto’.
Nos fins de semana, principalmente aos sábados e domingos, a afluência de pais acompanhados de seus filhos é um fato notável, seja para fazer compras, ou, simplesmente, para passear. Em ambos os casos, esse tipo de ‘programa’ costuma incluir uma a ida a uma das pastelarias ou lanchonetes, para fazer um lanche, tomar caldo de cana e comer pastel.
No ir e vir da freguesia de todos os dias, entretanto, ocorre, ainda, um movimento tão silencioso e constante quanto significativo. São aqueles que vêm ao Mercado, não para comprar, mas para recolher produtos descartados, ou separados por fugirem ao padrão desejável para a venda. Trata-se dos catadores, que, com suas sacolas, bolsas ou caixas, que carregam nas mãos, ou conduzem em bicicletas, juntam o que foi jogado fora, ou o que o feirante queira lhes dar, desde legumes, verduras, frutas, raízes e tubérculos, até tapiocas e biscoitos, utilizados para alimentação própria ou de animais domésticos. Nada obsta este procedimento, desde que não atrapalhe o movimento incessante dos fregueses.
Assim, fui, ao sabor das circunstâncias, encontrando pessoas que, como eu, estavam ali para se abastecer dos requisitos que compunham as pautas de consumo vigentes nas suas respectivas esferas domésticas. Uma parte desses encontros fortuitos não passava da mera co-presença, em torno de uma banca, a propósito da aquisição de verduras; frutas; legumes; queijos e biscoitos; peixe ou carne; caldo de cana e pastel, ou outros artigos quaisquer. A outra parte, no entanto, ultrapassava o objetivo imediato da transação comercial concomitante. Esta ensejava, ao contrário, algum tipo de conversação, seja com o vendedor, seja com algum outro freguês, interessado nos mesmos produtos.
No que diz respeito aos atores, que se relacionam nesses diálogos ‘sem compromisso’, pouco importa, como pude constatar, a categoria social a que pertencem, ou seu respectivo nível de instrução; se são ricos, pobres ou remediados; negros, brancos ou mestiços; de origem humilde ou aristocrática; jovens ou velhos; homens ou mulheres; adultos, adolescentes ou crianças; personalidades notórias ou cidadãos anônimos
Todos esses diálogos, no entanto, têm, ainda, em comum, o estilo. São marcados por uma informalidade, que dispensa os ritos mais elaborados de apresentação; as maneiras de falar mais rebuscadas; e as despedidas mais prolongadas. Por isso assumem um caráter, ao mesmo tempo, familiar e descontraído, não sendo incomum um certo tom de jocosidade, que as impede de se tornarem mais íntimos, tirando-lhes, previamente o peso das verdadeiras confidências. São, neste sentido, ‘sem compromisso’, ou seja, estritamente adaptadas à superficialidade e à fugacidade do momento.
Graças às banalidades, em torno das quais se tecem – verdadeiros denominadores comuns relacionais – e à modalidade peculiar do seu discurso, não servem para estabelecer nexos sociais, ou pessoais, mais profundos. Servem apenas para manter laços episódicos, feitos para a ocasião, que se criam, renovam e extinguem, na mesma oportunidade – ‘relações de mercado’.

Conclusão
Ao final desse périplo etnográfico, feito na companhia do leitor, convém retornar ao paradoxo que lhe serviu de ponto de partida e estímulo: por quê numa sociedade moderna, fortemente mercantilizada, e, portanto dotada de formas de distribuição mais adequadas aos seus requisitos de rentabilidade e racionalidade, os mercados continuam a manter o seu prestígio? Em virtude de que motivos continuam eles a atrair os consumidores, a ponto de, oferecerem resistência eficaz à expansão avassaladora dos supermercados e shopping-centers? Como se explica que eles tenham conseguido persistir teimosamente, lá onde pereciam fadados à extinção, ou até mesmo venham sendo recriados, lá onde haviam deixado de existir? Em busca de respostas para este enigma, poderíamos considerar o caso específico da Praça do Mercado de Campos dos Goytacazes, recorrendo, em primeiro lugar às razões de natureza prática, muitas vezes invocadas pelos ‘nativos’.
Com efeito, de acordo com eles, continua valendo à pena fazer compras neste mercado porque tudo lá é mais fresco, mais barato e de melhor qualidade do que nos outros lugares. Este argumento lhes permite, com freqüência dar conta das vantagens oferecidas, sobretudo, àqueles que em virtude da carência de meios, precisam encontrar alternativas viáveis para aquisição dos produtos indispensáveis ao seu consumo doméstico. Neste sentido, a variedade de um determinado artigo, quanto à qualidade e preço, contribui para torna-lo acessível às limitações do seu bolso. Nessa mesma direção vai a possibilidade, inexistente em outros âmbitos comerciais, de negociar descontos, graças aos quais se consegue adquirir um número maior de mercadorias.
Em flagrantes contrastes com eles, com efeito, a Praça do Mercado proporciona aos seus clientes um atendimento marcado pela pessoalidade. Neste universo, em que o comprador se encontra face a face com o vendedor, e não somente com um preposto deste, ele pode exercer, ativamente a sua faculdade de fazer perguntas sobre o produto cuja aquisição está considerando. Pode indagar sua origem, qualidade e formas de uso, discutindo o acerto da escolha que está por fazer. Se, como é comum, confia no comerciante, poderá aceitar as recomendações deste. Em virtude deste fato, por sua vez, quem vende assume uma responsabilidade, pessoal, diante de quem compra, pela qualidade do produto.
As transações mercantis, entretanto, surgem na Praça do Mercado, inseparavelmente vinculadas a uma dimensão expressiva. Com base, ao mesmo tempo no (eventual) anonimato e na igualdade, se constituem, em virtude dos encontros e das conversas ao redor de cada posto comercial, laços sociais.
Diante do que se procurou demonstrar e discutiu ao longo deste trabalho, “esse amável caos” que vem a ser o Mercado, é preenchido de sentidos diversos de trocas de bens, sentimentos e identidades, um lugar de sociabilidades, um espaço de interação, conflitos e paixões. É propriamente esse lugar, um local dos encontros improváveis, que faz do mercado ser indispensável ao universo da cidade. Por esse motivo é que se poderia dizer, com propriedade, que para ser campista é preciso aprovisionar-se na Praça do Mercado.


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